O
Pagem de Espadas
Tentei por horas e dias ir além com este texto. O único que
consegui, foi dizer que um Pagem de Espadas quando entra em nossa vida, ele
trás à tona olhares verídicos sobre a intenção dos outros. Ele expõe, coloca para fora, deixa
a mostra, um mar de verdades - mesmo
que provisória. Ele acusa,
aponta, fala, mostra; e, só não vê quem está à margem de uma sociedade
hipócrita.
Deixo a escrita com João Paulo Emílio Coelho Barreto ou
como preferia ser conhecido João do Rio.
O
homem de cabeça de papelão
João
do Rio
“No
País que chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras, vivia
um homem de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista. Absolutamente sem
importância social.
O País do Sol, como em geral todos os países lendários,
era o mais comum, o menos surpreendente em idéias e práticas. Os habitantes afluíam
todos para a capital, composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam
todos os lugares e todas as possibilidades da vida dos que, por desventura,
eram da capital. De modo que estes eram mendigos e parasitas, únicos meios de
vida sem concorrência,
isso mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os prédios da capital,
no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos proprietários, nos
subúrbios não passavam de um andar sem que por isso não enriquecessem os
proprietários também. Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias
matando gente para matar o tempo, cabarets fatigados, jornais, tramways,
partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda,
e um aborrecimento integral. Enfim tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma
grande cidade com pretensões da América. E o povo que a habitava
julgava-se, além de inteligente, possuidor de imenso bom senso. Bom senso! Se
não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do Bom Senso!
Tarôs: Smith-Waite; Morgan-Greer; Jolanda; Romani
Precisamente,
por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista.
Esse rapaz, filho de boa
família (tão boa que até tinha sentimentos), agira sempre em desacordo com a
norma dos seus concidadãos.
Desde menino, a sua respeitável progenitora
descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade
útil, mas a verdade verdadeira. Alarmada,
a digna senhora pensou em tomar providências. Foi-lhe impossível. Antenor era
diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no jeito de andar, na expressão
com que se dirigia aos outros. Enquanto usara calções, os amigos da família
consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos
falavam francês com convicção, mesmo falando
mal. Rapaz, entretanto, Antenor tornou-se alarmante. Entre outras coisas,
Antenor pensava livremente por conta própria. Assim, a família via chegar
Antenor como a própria revolução; os mestres indignavam-se porque ele aprendia
ao contrario do que ensinavam; os amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar,
sorriam.
Uma
só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora:
Antenor nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente,
incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos maternos. Porque
quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos e corria a bengala
os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso. Não só
para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos delegados de polícia
a quem teve de explicar a sua caridade.
Com
o fim de convencer Antenor de que devia seguir os tramitas legais de um jovem solar, isto é: ser
bacharel e depois empregado público nacionalista, deixando à atividade da
canalha estrangeira o resto, os interesses congregados da família em nome dos
princípios organizaram vários meetings como aqueles que se
fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e
a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos
outros também para nós. Antenor, diante da evidência, negou-se.
—
Ouça! bradava o tio. Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco importa!
Mas seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um
político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.
—
Mas não quero ser nada disso.
—
Então quer ser vagabundo?
—
Quero trabalhar.
—
Vem dar na mesma coisa. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas:
dinheiro, prestígio e posição. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando — é
vagabundo.
— Eu
não acho.
— É
pior. É um tipo sem bom senso.
É bolchevique. Depois, trabalhar para os outros é uma ilusão. Você está
inteiramente doido.
Antenor
foi trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para trabalhar.
Pode-se dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para
trabalhar. Acedendo ao pedido da respeitável senhora que era mãe de Antenor,
Antenor passeou a sua má cabeça por várias casas de comércio, várias empresas
industriais. Ao cabo de um ano, dois meses, estava na rua. Por que mandavam
embora Antenor? Ele não tinha exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de
idéias. Até alegre — qualidade raríssima no país onde
o sol, a cerveja e a inveja faziam batalhões de biliosos tristes.
Mas companheiros e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco
não o aturavam. Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o.
Quando um patrão não atura o empregado, despede-o. É a norma do País do Sol.
Com Antenor depois de despedido, companheiros e patrões ainda por cima
tomavam-lhe birra. Por
que? É tão difícil saber a verdadeira razão por que um homem não suporta outro
homem!
Um
dos seus ex-companheiros explicou certa vez:
— É
doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e
acaba não sendo tolerado.
Mau companheiro. E depois com ares...
O
patrão do último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de
Antenor:
— A
perigosa mania de seu filho é por em prática idéias que julga próprias.
—
Prejudicou-lhe, Sr. Praxedes?
Não.
Mas podia prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seu filho
fosse águia, quem manda na
minha casa sou eu.
No
País do Sol o comércio é uma maçonaria. Antenor, com fama de perigoso, insuportável, desobediente, não pôde em breve
obter emprego algum. Os patrões que mais tinham lucrado com as suas idéias eram
os que mais falavam. Os companheiros que mais o haviam aproveitado tinham-lhe
raiva. E se Antenor sentia a triste experiência do erro econômico no trabalho
sem a norma, a praxe, no convívio social compreendia o desastre da verdade. Não
o toleravam. Era-lhe impossível ter amigos, por muito tempo, porque esses só o
eram enquanto. não o tinham explorado.
Tarô: Maddonni
— É
doido, mas bom.
Os parentes, porém, não o cumprimentavam mais. Antenor
exercera o comércio, a indústria, o professorado, o proletariado. Ensinara
geografia num colégio, de onde foi expulso pelo diretor; estivera numa fábrica
de tecidos, forçado a retirar-se pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de jornal e condutor de
bonde. Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava,
sentia, dizia outra coisa diversa.
—
Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal...
— É
da tua má cabeça, meu filho.
—
Qual?
— A
tua cabeça não regula.
—
Quem sabe?
Antenor
começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração apaixonou-se. Era uma
rapariga chamada Maria Antônia, filha da nova lavadeira de sua mãe. Antenor
achava perfeitamente justo casar com a Maria Antônia. Todos viram nisso mais
uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, a resposta de Maria Antônia
foi condicional.
— Só
caso se o senhor tomar juízo.
—
Mas que chama você juízo?
—
Ser como os mais.
—
Então você gosta de mim?
— E
por isso é que só caso depois.
Como
tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos. Antenor pensava em
arranjar a má cabeça, estava convencido.
Nessas
disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus
olhos descobriram a tabuleta de uma "relojoaria e outros maquinismos
delicados de precisão".
Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.
—
Traz algum relógio?
—
Trago a minha cabeça.
—
Ah! Desarranjada?
—
Dizem-no, pelo menos.
— Em
todo o caso, há tempo?
—
Desde que nasci.
—
Talvez imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso
dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças como
os relógios para regular bem...
Antenor
atalhou:
— E
o senhor fica com a minha cabeça?
— Se
a deixar.
—
Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar sem cabeça...
—
Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão.
—
Regula?
— É
de papelão! explicou o honesto negociante.
Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão, e saiu para a rua.
Dois
meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer com o
Ministro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado
para os exércitos aliados.
A respeitável mãe de Antenor via-o mentir,
fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. Os parentes, porem,
estimavam-no, e os companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor
era maluco.
Antenor
não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar.
Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônia
tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente,
desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. Outras
Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher.
No centro operário, a sua fama crescia, querido dos patrões burgueses e dos
operários irmãos dos spartakistas da Alemanha. Foi eleito
deputado por todos, e, especialmente, pelo presidente da República — a quem
atacou logo, pois para a futura eleição o presidente seria outro. A sua
ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor esquecia o passado, amava
a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava admiravelmente.
Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do
País do Sol estavam na dificuldade de concordar no nome do novo senador, que
fosse o expoente da norma, do bom senso. O nome de Antenor era cotado. Então
Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar pulso à opinião,
quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memória.
—
Bolas! E eu que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo... Que acharia o
relojoeiro? É capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida
com uma cabeça de papelão!
Saltou.
Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.
— Há
tempos deixei aqui uma cabeça.
—
Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde
que ia desmontar a sua cabeça.
—
Ah! fez Antenor.
—
Tem-se dado bem com a de papelão? — Assim...
— As
cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se
muito.
—
Mas a minha cabeça?
—
Vou buscá-la.
Foi
ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.
—
Consertou-a?
—
Não.
—
Então, desarranjo grande?
O
homem recuou.
—
Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual,
como perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no
mundo melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de todas
as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de
exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours.
Antenor
ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.
—
Faça o obséquio de embrulhá-la.
—
Não a coloca?
—
Não.
—
V.EX. faz bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente
dá na vista.
Mas
Antenor era prudente, respeitador da harmonia social.
—
Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez prejudique.
—
Qual! V.EX. terá a primeira cabeça.
Antenor
ficou seco.
—
Pode ser que V., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a
dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem.
Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V.
com ela. Eu continuo com a de papelão.
E,
em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser
nada tendo a cabeça mais admirável — um dos elementos mais ilustres do País do
Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.”
Tarô: Illuminati Sola Busca
Também agradeço, à Jana Janine, por me apresentar a Arya
Stark, do Game Of Thrones, uma personagem única e admirável!
Ao Mark Elliot Zuckerberg, por
"Pagianespadizar", a vida virtual!
E, a Glauber Lemos, por permitir que o Tarô esteja
em minha vida!